domingo, 31 de janeiro de 2010

CRÔNICAS DE UM FAVELADO - INDIGNAÇÃO

Dando continuidade a série "Crônicas de um favelado" hoje vou destacar o texto "Indignação" escrito a cinco anos atrás quando um tiroteio entre traficantes na porta da escola onde trabalho resultou em seis cidadãos  baleados, três crianças e três responsáveis. Porquê esse texto? Por que apesar de terem se passado cinco anos a realidade pouco mudou e alguns problemas até se agravaram. Na ocasião enviei esse texto para a Secretária de Educação de então, mas acredito que muitas reflexões nele propostas ainda hoje merecem nossa atenção.
Rio de Janeiro, dezembro de 2005.

 Srª Secretária;

Espero que essa “reflexão” a encontre empenhada na luta por uma sociedade mais digna e mais justa, onde a Educação - condição sine qua non para o pleno desenvolvimento sadio de um “corpo” social, seja tratada com o devido respeito à sua incontestável importância e ao seu inestimável valor enquanto base estrutural de uma sociedade realmente comprometida com a democracia e a igualdade social.

Nascido e criado na Maré. Presenciei, nesses 39 anos de vida, muitas lutas em prol da afirmação de nossa identidade e de nossa cidadania, assim como profundas transformações na paisagem urbana da comunidade. 

As imagens “surreais” das palafitas boiando na água imunda da Baía de Guanabara que impressionava a quem passava pelas condições subumanas em que viviam os moradores da Maré nas décadas de 60 e 70, hoje foram substituídas pela presença marcante do “progresso” na imponente imagem das duas vias rodoviárias mais importantes da cidade do Rio de Janeiro, a Linha Amarela e a Linha Vermelha atravessando grande extensão da comunidade. 

Aqui aprendi a ser humano, apesar das condições desumanas. Aqui também aprendi que não bastava apenas ser humano, era imprescindível ser cidadão e não pseudocidadão. Aqui aprendi a respeitar e a entender a minha condição através das condições do outros. Aqui aprendi na dignidade da postura frente à luta cotidiana de todos pela sobrevivência, valores de elevada transcendência ética e moral. 

Parafraseando Mr. Catra, a “favela me deu overdose de consciência”.  Daí o impulso e a motivação a lutar pela inserção social de forma ética e cidadã.

Formado em letras pela UFRJ em 1989, mesmo em detrimento às difíceis condições que caracterizavam o cotidiano da Maré na década de 80, quando de cada 5000  “favelados”, apenas um conseguia concorrer a uma vaga na universidade pública; rapidamente percebi que nada do que vivenciei afirmando minha cidadania e minha identidade no meu processo de formação enquanto ator social, todo realizado na escola e na universidade pública, não teria o menor sentido se não fosse compartilhado e somado a outras vivências em benefício da transformação da realidade que caracterizava minha comunidade de origem . 

Hoje sou Educador e trabalho com orgulho e dignidade pela melhoria das condições de vida na comunidade e pela sua inserção e a inserção de seus moradores no contexto mais amplo de nossa sociedade com ética e respeito.  Trabalho no Ciep Operário Vicente Mariano. Aquele situado na praia de Inhaúma, local outrora paradisíaco que encantou a príncipes e princesas na época do reinado, hoje batizado pelo lamentável, e infelizmente eficiente trabalho preconceituoso de exclusão social da mídia, como “Faixa de Gaza”. 

Sra. Secretária da Educação, o tiroteio com sete feridos na porta do Ciep Operário Vicente Mariano na “Faixa de Gaza” - comunidade da Maré, no dia 25 de outubro de 2005, não é normal, e muito menos admissível sob nenhuma ótica.

 Para a mídia já não tem mais interesse. O Sangue já secou! Para a sociedade de maneira geral já é passado. Já faz mais de um mês! Mas para toda a comunidade é uma triste realidade. Restando às vítimas as marcas indeléveis por toda a vida no físico e no psicológico aumentando ainda mais a bola de neve de conseqüências da exclusão que gradativamente vão desintegrando a sociedade.

 Recuso-me a aceitar que quatro adolescentes/crianças uniformizadas e três responsáveis sejam alvejados na entrada da escola por balas perdidas e que isso seja ou se torne normal. 

Recuso-me a aceitar que a escola - berço da educação e da formação ética e cidadã; espaço sagrado onde se estrutura uma sociedade realmente digna e justa; seja desrespeitado pela ignorância e esquecido pelas autoridades. 

Nesse momento tão complexo de nossa sociedade quando a violência atinge níveis nunca antes imaginados e o homem, que se diz ‘Ser Humano’, vai perdendo pouco a pouco sua humanidade se tornando vil, cruel e animalesco em suas posturas e atitudes na esfera social; projetos de segurança pública realmente comprometidos com a dignidade, a ética e o respeito à vida em sociedade, se fazem necessários e urgentes para que o ator social possa afirmar e exercer com coerência sua plena cidadania. 

Sendo assim, do fatídico e lamentável episódio ocorrido na porta da unidade escolar na qual leciono na comunidade onde nasci e cresci; que tenho certeza não é normal e nem se tornará normal; retiro a certeza de que algo não só deve ser feito como já deveria ter sido feito há muito tempo. 

Para que o fato não se torne corriqueiro e normal em nossas vidas é necessário que atitudes sejam tomadas no sentido de reverter esse inaceitável quadro de desordem que se instalou na esfera social. É necessário que esforços sejam empreendidos na reorganização de nossa sociedade para que possamos desfrutar democraticamente do direito básico de ir e vir.
Para tanto sugiro com todo o respeito à Secretária de Educação do  Município do Rio de Janeiro pelo seu empenho na construção de uma realidade mais justa no plano educacional; o fomento, a promoção, o incentivo e o apoio a projetos e estratégias em parceria com a Secretaria de Segurança Pública, ou a quem de dever, que possam atender às necessidades básicas e mínimas de segurança das unidades escolares que compõem a rede municipal, hoje visivelmente carente de projetos específicos que possam atender a essas necessidades.  

Que sejam promovidos fóruns e debates que dinamizem ações efetivas no combate à violência! Que sejam promovidos concursos de projetos voltados para a segurança escolar! Que sejam apoiados e incentivados projetos diretamente relacionados ao esclarecimento e ao combate à violência em seus diferentes níveis e manifestações nas unidades escolares! 

Enfim! Que algo seja feito! E que realmente sejam tomadas providências para que fatos “violentos” e inadmissíveis não se tornem rotineiros e normais em nossa vida cotidiana, e muito menos em nossa já tão cheia de “anormalidades” - rotina escolar.

Sem mais pelo momento, agradeço sua preciosa atenção e desde já me ponho a serviço da Secretária para o desenvolvimento de iniciativas e projetos que visem a afirmação da identidade e da cidadania dos moradores das comunidades de baixa renda em nosso município com ética  e respeito ao cidadão.

Atenciosamente,

Diógenes Lima
Professor I – Língua Estrangeira – Espanhol
Ciep Operário Vicente Mariano


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