segunda-feira, 28 de setembro de 2009

CRÔNICAS DE UM FAVELADO - INFÂNCIA NA MARÉ - PARTE I

Da infância na maré me lembro pouco, ou quase nada, da indignação dos moradores frente às condições (sub) humanas que caracterizavam aquele cotidiano. Minha inocência infantil se envolvia com outras imagens e aspectos do cotidiano; se fixava em formas, ritmos e cores que na visão quase sempre onírica do olhar infantil revelavam um espaço mágico e labiríntico formado por uma arquitetura improvisada onde becos saiam em becos, onde portas se confundiam com janelas e onde pessoas e animais conviviam harmoniosamente num ambiente praticamente rural que pra mim era a imagem do paraíso - o lugar onde nasci; cresci e criei laços afetivos, espaciais e pessoais que hoje compõem a minha história, a minha origem.


Enquanto alguns espaços da favela me fascinavam pelas possibilidades lúdicas, oferecendo formas diversificadas de interação física, onde vivências, jogos e brincadeiras infantis se articulavam com uma naturalidade e uma espontaneidade sem igual; outros me apavoravam e me atormentavam pela fragilidade estrutural e pelo perigo sempre iminente.

Pique Bandeira, Pique Esconde, Polícia Ladrão, Carniça, Bento que bento é o frade, Garrafão, Pique Tá, Pique Cola, Bola de Gude, Pião, Chicotinho Queimado, Amarelinha e tantas outras brincadeiras do universo infanto-juvenil que recordo com saudades; tudo acontecia em uma harmonia sem igual, que só a mente infantil livre de condicionamentos e preconceitos era capaz de perceber...



...Um dia seguia ao outro oferecendo um variado leque de opções em uma espantosa explosão de possibilidades interativas. A felicidade era realmente continuada.

Mas ter que acompanhar minha avó ou minha mãe à casa de alguma amiga ou parenta que naquela ocasião vivia na Nova Holanda, ou ter que ir levar lavagem para os porcos no chiqueiro com algum vizinho era um verdadeiro tormento.

A atmosfera era apavorante, onde pessoas, em situação ainda mais desumana e humilhante que a nossa lá no pé do morro, se equilibravam em passarelas instáveis e inseguras feitas de restos de madeira que a maré trazia e que, só Deus sabe como, eram arquitetonicamente improvisadas ligando uma palafita à outra.

O cheiro fétido que exalava da mistura composta de lixos e detritos orgânicos jogados a céu aberto pelos moradores da comunidade na maré parecia insuportável no verão. O cheiro subia da lama provocando náuseas e dores de cabeça nos menos acostumados. E se de lá do morro já era insuportável, imagina quem morava nas palafitas quase flutuantes.

Meu Deus! Se eu escorregar e cair na maré? `

Cada passo era cuidadosamente estudado, pois uma madeira em falso podia representar o inevitável mergulho naquela lama imunda que só desaparecia quando a Maré enchia no final da tarde.

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