segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

CRÔNICAS DE UM FAVELADO: O ATO VIVO DA "PERFORMANCE"

Relembrar experiências vividas; sejam elas de que índole for, é sempre muito interessante, principalmente quando se tem plena consciência de que a partir desse relembrar, se pode repensar, reavaliar e afirmar as “marcas” indeléveis deixadas por essas vivências. Marcas essas que, carregadas de significados e significantes, compõem hoje o manancial de elementos que formam nossas múltiplas personalidades (O eu pai, o eu filho, o eu amigo, o eu artista, o eu ator social, o eu...) e que revividas acabam revelando aspectos ocultos e importantes dessas vivências que até então passaram desapercebidos pelo consciente, mas que seguramente habitam o rico e maravilhoso universo do inconsciente.
A Dança, enquanto possibilidade do movimento do corpo humano em plena integração consigo mesmo e com o universo; sempre me fascinou. Mas é óbvio que essa fascinação na infância tinha conotações e denotações diferenciadas da fascinação exercida na adolescência ou da fascinação que exerce agora na fase adulta.


Os primeiros lampejos de interesse pela Dança, enquanto arte; manifestaram-se no primeiro contato que tive com a linguagem contemporânea do movimento, mais precisamente quando tive o prazer de assistir o Grupo Dança da UFRJ em uma de suas maravilhosas apresentações no campus da universidade no período em que cursava a Faculdade de Letras. 

A Dança que diziam ser Arte e à qual tinha acesso em raros momentos quando aparecia na televisão, decididamente não me fascinava. Parecia-me “sem graça” e hoje, a partir de outra perspectiva, com um olhar mais crítico e mais fundamentado pelas experiências vividas no universo da Arte, consigo entender o porquê daquela primeira impressão. Era estéril, limitada e muito comprometida com a superficialidade. 

Conseguir assistir a dois minutos de Ballet na infância era mais torturante do que ter que fazer as tarefas de casa da escola. Mas as tarefas de casa eram uma obrigação e tinha que suportar, não tinha jeito, já assistir ao Ballet, graças a Deus não era uma obrigação, e então nunca tive assistia a um completo.

Mas o contato com a humanidade e com a emoção da Dança contemporânea, isso sim revolucionou e mudou completamente o rumo e o sentido da minha vida.

Depois do forte impacto emocional da experiência estética vivida, não era de ser esperar outra coisa senão um forte entusiasmo em estreitar relações com aquele tipo de arte. Foi então que, em bem pouco tempo, me vi completamente absorvido pelo universo da Dança e suas maravilhosas conseqüências em minha vida.

Os primeiros passos como bolsistas de iniciação artística no Grupo Dança da UFRJ me colocaram frente a um mito da Dança Brasileira, Helenita Sá Earp, que com simplicidade e muita reverência ao processo educacional, me orientou, me guiou e me educou para o movimento universal, a dança inerente em mim.

Trabalhando como monitor na produção divulgação do Grupo Dança da UFRJ pude estar em contato direto com o fazer artístico, tanto na sua produção, quanto na sua extensão. 

A vida me dava um curso intensivo; e eu ainda não tinha noção. 

Hoje posso afirmar sem titubear que sou um cara de muita sorte. E os sincronismos da vida, que me levaram a estrear como bailarino um pouco mais de um ano depois de ter vivido aquela sublime experiência estética assistindo ao grupo representativo da universidade; confirmam isso.


Mas foi ainda como assistente de produção que tive uma das mais belas experiências estéticas da minha vida.
O cenário não poderia ser mais maravilhoso para uma experiência dessa índole - a Praça da Cinelândia no centro do Rio de Janeiro. Espaço vivo e dinâmico, onde corpos se cruzam, olhares se procuram e a urbe se caracteriza num constante vai e vêm de carros, pessoas, sonhos e esperanças. 
 
Na ocasião, um evento organizado para divulgar as produções artísticas e culturais da UFRJ, na gestão do saudoso reitor Horácio de Macedo, acontecia num palco montado em frente à Câmara Municipal. No programa, que incluía várias atrações, o Grupo Dança e a Cia de Danças Folclórica da UFRJ se apresentariam. 

Além de estar vivendo um momento mágico da minha própria história e da História política de nosso país que na ocasião fervilhava com o povo nas ruas gritando por “Diretas Já” tive a oportunidade de presenciar uma das mais belas performances de dança que já assisti na vida.

No palco, a Cia de Danças Folclóricas da UFRJ dançava o jongo, uma bela coreografia resultante do trabalho de pesquisa sobre as raízes culturais negras do povo brasileiro. O público transeunte que parava ávido por cultura; aplaudia amontoado em frente ao palco a Cia Folclórica e pedia bis, enquanto atrás desse mesmo público, esquecida e marginalizada pela sociedade, uma moradora de rua negra, que trazia na pele o ranço da discriminação racial e da exclusão social; bailava leve, linda e sorridente sua raiz, sua origem e sua dignidade cultural, o verdadeiro jongo no ato vivo de uma improvisação performática mais do que espontânea e autêntica.

Agradeço ao sincronismo da vida e suas fantásticas lições por ter estado ali naquele momento mágico e único como aprendiz da vida assistindo, talvez sozinho, pouco importa, a tão autêntica e bela performance de dança daquela criatura inesquecível.

Hoje, quando a linguagem da performance se fundamenta em minha vida como o fio condutor do meu fazer artístico, só tenho a ganhar e a crescer ao relembrar e reviver a emoção e a verdade daquela experiência vivida.

Hoje posso entender um pouco melhor a reflexão que propõe Peter Brook, por que presenciei naquele então o ato vivo da performance em sua máxima espontaneidade. Cresci enquanto ator social naquele instante significativo; ampliei minha percepção artística e passei a entender e a buscar no meu fazer artístico a partir de então, a essência daquela força e daquele valor expressivo do ato vivo performático.


Claro que outras experiências significativas se sucederam marcando e ampliando sobremaneira minha percepção das nuances reveladoras do universo artístico, de suas possibilidades múltiplas e principalmente de sua conexão direta com a verdade e com a essência do viver cotidiano ao promover a reflexão dinâmica da realidade e de sua re-construção.

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